12 novembro 2009

Carrinhos de lata





Ouvi...e com muita graça...que muitos miúdos de hoje pensam que os frangos nascem nus e sem cabeça !!!
Muitos têm tudo e mais alguma coisa no que concerne a brinquedos carissímos, e ao fim de poucos dias já não lhes ligam nenhuma.
Aqui transcrevo com vénia, e de um amigo, o curioso “remember” dos seus tempos de meninos, a quem o “engenho e arte” levava à improvisação dos seus próprios brinquedos, com os materiais recorrentes, os únicos a que teriam acesso, naqueles tempos de "vacas magras"...
Com tristeza, sabemos que na imensa África de hoje, muitos meninos ainda utilizam os mesmos materiais para construir os seus pobres brinquedos, muitas vezes as armas, com que convivém dia-a-dia desde que nasceram.

DIGAM LÁ SE NÃO TÊM INVEJA DOS SABERES E DO TEMPO

Onde vais? Dizia-me, da porta da entrada da casa, a minha mãe.
Vou dar uma voltinha com o meu carro, respondi.
Qual carro? Pergunta-me com a sua voz já com os decibéis acima do volume considerado normal.
O carro de transporte que eu fiz – respondo quiçá meio feliz meio a medo, afastado quanto bastasse - mostrando-o dependurado pelo arame que lhe servia de volante, pois tinha dúvidas que os seus lindos olhos azuis, não ficassem arregalados e consequentemente as suas mãos “trabalhassem”, quando se abeirasse por perto do “engenheiro”, já com a construção pronta a rolar no asfalto da rua onde vivia.
Dá cá o carro e vai ao vinho para o jantar do teu pai!

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

A taberna do Sr. Manuel ficava na entrada do bairro, mais propriamente num dos lados do Pavilhão da Praça e tinha ligação à mercearia que também era dele.
O balcão era de mármore a todo o comprimento e dava-me, em altura, pelo pescoço.
As pipas estavam encostadas às paredes, mesas e bancos não haviam dada a sua pequena dimensão.
A restrição à entrada dos miúdos não acontecia, mas só era possível a permanência no tempo do atendimento.

De garrafa na mão, com meio litro de vinho para o jantar do Adriano, meu pai, venho em correria rua abaixo, pois não queria deixar de apresentar, enquanto era dia, o meu novo “modelo” de transportes de mercadorias aos outros putos do bairro.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Mas em que consistia tal relíquia?

Este meu carro de “pesados” era construído com 4 caixas de latas de graxa redondas, que faziam de rodas ligadas em eixo, sendo o chassis composto por duas caixas de latas de conserva de atum rectangulares, tudo ligado por arame.
Por fim levava à altura da barriga, uma gancheta às rodas dianteiras a fim de o poder manobrar.

O carro podia levar 3 caixas de latas de conservas, mas não mais, senão, “abarrigava” com o peso e, arrastava pelo chão.
Era preferível fazer um atrelado, apenas com duas rodas a trás e engatado ao carro da frente, como qualquer TIR de hoje.
Duas das caixas da graxa que iam servir de rodas, foram-me dadas pelo Sr. Joaquim, o sapateiro, fruto das conversas em algumas tardes que, sentado no parapeito da janela que rasava o chão do passeio, o via na arte a trabalhar e na esperança que a graxa depressa se esgotasse.

Era muito pequena a oficina.
Estava situada na Rua das Furnas, mesmo na entrada do bairro.
Lá dentro, a um dos cantos, a máquina de cozer, de resto, as paredes eram cobertas de prateleiras com sapatos de sola (poucos), também de pneu ou borracha (muitos), outros devidamente restaurados, já usados, mas prontos para vender a gente certamente muito modesta.
Os outros apetrechos eram: Facas bem afiadas, lixas, cola, escovas, bem como uma serie de sevelas que estavam devidamente penduradas.
Uma lamparina para derreter as pomadas em barra, tintas e as graxas.
No caixote da graxa lá de casa fui encontrar duas caixas quase vazias, encontrando a solução para as duas rodas que faltavam.
Na verdade raras eram as engraxadelas, os meus sapatos eram amarelos, de pele de vaca (?) curtida, os da minha mãe eram alpercatas, só o meu pai usava botas e era eu que as engraxava de quando em quando, mas com sebo, portanto era pouco provável, aos meus pais, darem pela falta das ditas cujas.
As latas de atum foram fáceis de encontrar nas estrumeiras, problemático era desengordurá-las.
Era com areia e sabão com o devido cuidado, senão os cortes nos dedos eram certos.
Quanto ao arame, foi encontrado nas cercas dos quintais, nas ocasiões em que os vizinhos estavam “distraídos”, caso contrário os estalos eram a dobrar, do vizinho e lá em casa.
Digam lá se não têm inveja dos saberes e do tempo!

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

Quadras do poema - Os Putos de Ary dos Santos
O carro é construção do autor em 2009. Em miúdo fazia melhor

Texto e 2 fotos, gentileza do amigo Raul P.S.
Google

2 comentários:

Pica Sinos disse...

Este Zé é uma maravilha.
Aliás sempre o foi.
Quem ler esta msg não pense que estas minhas letras são favor ou lisonja.
Vejam todos os seus trabalhos em pormenor.
Sobretudo os seus quadros que desenhou e pintou que muito dele dizem.
Terei que encontrar um dia as palavras adequadas para descrever esta personagem que sempre admirei com amizade, respeito e camaradagem.

Um Abraço Zé Manel

José Justo disse...

Amigo
miminhos...miminhos !!
O que se faz com gosto, acaba por nos dar muito prazer, e para mim isso é o mais importante.
Como dizia Picasso "...10% de inspiração e 90% de transpiração".
Os tempos das "lindezas" já lá vão, e hoje sou mais de apreciar do que executar.
Sabes como admiro os teus trabalhos no Blog bart1914.blogspot.com, e pena tenho de ficar a milhas dos teus textos, quando faço alguns escritos.
Enfim...não se pode ter tudo.
Abraços dos fortes para ti.