21 maio 2010

A geração do ecrã

«Desculpem se trago hoje à baila a história da professora agredida
pela aluna, numa escola do Porto, um caso de que já toda a gente
falou, mas estive longe da civilização por uns dias e, diante de
tudo o que agora vi e ouvi (sim, também vi o vídeo), palavra que a
única coisa que acho verdadeiramente espantosa é o espanto das pessoas.
Só quem não tem entrado numa escola nestes últimos anos, só quem não
contacta com gente desta idade, só quem não anda nas ruas nem nos
transportes públicos, só quem nunca viu os 'Morangos com açúcar', só
quem tem andado completamente cego (e surdo) de todo é que pode ter
ficado surpreendido.

Se isto fosse o caso isolado de uma aluna que tivesse ultrapassado
todos os limites e agredido uma professora pelo mais fútil dos
motivos - bem estaríamos nós! Haveria um culpado, haveria um
castigo, e o caso arrumava-se.
Mas casos destes existem pelas escolas do país inteiro. (Só mesmo a
sr.ª ministra - que não entra numa escola sem avisar - é que tem
coragem de afirmar que não existe violência nas escolas).
Este caso só é mais importante do que outros porque apareceu em
vídeo, e foi levado à televisão, e agora sim, agora sabemos
finalmente que a violência existe!

O pior é que isto não tem apenas que ver com uma aluna, ou com uma
professora, ou com uma escola, ou com um estrato social.
Isto tem que ver com qualquer coisa de muito mais profundo e muito
mais assustador.
Isto tem que ver com a espécie de geração que estamos a criar.
Há anos que as nossas crianças não são educadas por pessoas.
Há anos que as nossas crianças são educadas por ecrãs.
E o vidro não cria empatia.
A empatia só se cria se, diante dos nossos olhos, tivermos outros olhos, se tivermos um rosto humano.
E por isso as nossas crianças crescem sem emoções, crescem frias por
dentro, sem um olhar para os outros que as rodeiam.

Durante anos, foram criadas na ilusão de que tudo lhes era permitido.
Durante anos, foram criadas na ilusão de que a vida era uma longa
avenida de prazer, sem regras, sem leis, e que nada, absolutamente
nada, dava trabalho.
E durante anos os pais e os professores foram deixando que isto
acontecesse.

A aluna que agrediu esta professora (e onde estavam as
auxiliares-não-sei-de-quê, que dantes se chamavam contínuas, que não
deram por aquela barulheira e nem sequer se lembraram de abrir a
porta da sala para ver o que se passava?) é a mesma que empurra um
velho no autocarro, ou o insulta com palavrões de carroceiro (que me
perdoem os carroceiros), ou espeta um gelado na cara de uma (outra)
professora, e muitas outras coisas igualmente verdadeiras que se
passam todos os dias.

A escola, hoje, serve para tudo menos para estudar.
A casa, hoje, serve para tudo menos para dar (as mínimas) noções de
comportamento.
E eles vão continuando a viver, desumanizados, diante de um ecrã.
E nós deixamos.»
Alice Vieira, Escritora
Gentileza da amiga Nini
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